Espelhos - O Reflexo da Nossa Identidade
Na busca pela nossa identidade, o espelho emerge da Mitologia Grega banhado pelas águas que hipnotizaram Narciso.
O
diálogo entre o sujeito e o seu reflexo expressam um universo
inconsciente adormecido, disposto a projetar, no outro, as qualidades
repudiáveis que o sujeito nega existir em si mesmo.
A
percepção distorcida do sujeito em relação à sua natureza espiritual
converge sua consciência a identificar monstruosidades e aberrações como
características inerentes à personalidade de outros sujeitos. E é na
negação do outro que o sujeito toma consciência de si,
individualizando-se por um processo traumático de desvinculação dos
demais seres essencialmente iguais a ele.
Como essa individualização recai em falsidade ideológica, o sujeito perde-se na alienação dos sentidos, tomando por realidade um mundo ilusório e impermanente e sofrendo as agruras dos vícios criados para o sustento de suas máscaras.
Narciso morreu apaixonado por si mesmo. Definhou à beira de um lago, absorto do mundo, obcecado pela beleza da sua imagem refletida nas águas. Narciso pode representar a exacerbação do ego, o egoísmo e a vaidade humana sem limites. A Psicanálise aponta o narcisismo como uma etapa da fase oral. A organização psíquica infantil tende a viver o mundo interno de fantasias como realidade, apreendendo a realidade externa objetiva, apenas, parcialmente.
Outras interpretações do mito propõem que essa paixão tenha
sido deflagrada por uma visão transcendental. Mirando-se nas águas
serenas do lago, Narciso teria distinguido a sua verdadeira
natureza, infinitamente mais bela do que a sua constituição física.
Perplexo com a perfeição que jazia em si mesmo, ficou impossibilitado de
desviar sua atenção da grandiosa imagem que se revelava aos seus olhos
como um segredo divino.
O
espelho só mostra as coisas como elas são. Mas as coisas podem ser de
muitas maneiras. Depende do olhar. A verdade não é estática, está ora
aqui ora ali, bailando aos olhos da subjetividade. Assim como a água,
que flui por todos os lugares, mudando a sua coloração, grau de pureza,
densidade e temperatura sem, no entanto, deixar de ser água, a realidade
imprime a ação do tempo em nossa alma, transmutando a nossa percepção
do passado, do presente e do futuro, sem que as coisas deixem, no fundo,
de ser o que elas sempre foram e serão.
A realidade objetiva, talvez inacessível em sua completude, traz o narcisismo
à tona mais uma vez. Deixando as fantasias da infância de lado, o drama
da percepção objetiva fragmentada nos persegue em outras instâncias do
nosso processo de amadurecimento. O espelho é o outro eu. O espelho é o
marido, o pai, o filho, o patrão, o vizinho. O espelho nos confunde a
cada olhadela. Pela visão do outro, jamais saberemos quem somos na
realidade. Mas sem o outro, nem sequer podemos ser.
A família é o primeiro polo de manifestação da desigualdade social. Cada irmão aparece em cena como um personagem diferente, fantasiado aos moldes de seus desejos. Mas o espelho em que se olham para ajeitar a fantasia é sempre o mesmo: o pai e a mãe. Essa primeira delimitação da personalidade dos filhos é chamada de educação. Os pais educam seus filhos para que eles vejam aquilo que eles mesmos conseguem ver, numa projeção bem intencionada de seus próprios desejos. Todavia, essa projeção não se limita somente à infância dos filhos, sendo carregada, inconscientemente, para a fase adulta deles.
A
família, o Governo, a mídia e a religião são apenas alguns dos fatores
que influenciam na formação da opinião pública e do "bom-senso"
regulador da ética na sociedade, seja através da sugestão
psíquica seja através da força física. Nós não somos livres. A liberdade
é uma ilusão de óptica. Nossas atitudes são condicionadas por padrões
mentais e emocionais adquiridos, numa reação automática à diversidade de
ideias e emoções de outros indivíduos. A sensação de estarmos sendo
manipulados é a causa da frustração interna de cada um. E quanto mais
frustração reconhecermos existir em nós mesmos, maior será a nossa
tendência de manipularmos, também, a visão dos outros.
Sim,
estamos vivendo em um labirinto de espelhos, onde a única imagem
verdadeira é a da nossa ignorância. A violência é a projeção mais
simplória da inconsciência espiritual. Mas a ignorância da nossa
condição se projeta de múltiplas maneiras. Fica difícil, por exemplo,
definir claramente os limites e os objetivos da manipulação quando
circulamos em meio à erudição. Na ciência, tudo parece se difundir com
muita propriedade, obedecendo aos mais rígidos critérios de validação da
Lógica. Com o mais impugnável dos argumentos, porém, assumem-se os
erros do passado e promulgam-se tantos outros para o futuro. Tudo em
nome de um bem maior. Desde que os méritos e os resultados das manobras
políticas satisfaçam os interesses particulares de cada membro da
sociedade, mantêm-se a roda girando e os bolsos cheios de perjúrio.
Prefiro
acreditar que Narciso tenha morrido por flertar com o Absoluto. A flor
de lótus que nasce às margens do lago agracia a sua contemplação. Longe
das teorias confinantes do "conhecimento humano", o Absoluto tudo
abarca, tudo aceita, tudo transmuta. Destarte, a liberdade conquistada
por Narciso não está na morte do corpo físico, mas na aniquilação de
qualquer tipo de enquadramento social. Nós vivemos em liberdade
condicional. Para se ganhar alforria do mundo criado pelas nossas
ilusões, há de se ver no espelho não aquilo que se quer, mas aquilo que
deve ser visto. Podemos começar por abrir os olhos e focar no essencial,
lembrando que já não somos mais um bebê.
Boa Sorte!
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